Ilustrando a biodiversidade: Contexto, importância e processo da ilustração científica
- Luís Gustavo Barretto Rodrigues
- 12 de abr. de 2021
- 9 min de leitura
Antes de dissertar sobre o assunto da ilustração científica, é importante mencionar sobre suas origens e contexto histórico. A representação da biodiversidade em imagens é observada desde muito tempo e em diferentes civilizações do mundo, variando no seu grau de objetividade. Por exemplo, as pinturas rupestres de animais nas paredes de cavernas, que datam da pré-história e figuras de animais e plantas pintadas em paredes, tumbas e sarcófagos da civilização egípcia – que representam espécies da fauna e flora da região na época, onde é capaz de identificar até espécies animais que possivelmente já foram extintas[1]. A origem da ilustração botânica mais acurada possivelmente deriva da literatura de farmacopeias – livros escritos geralmente por médicos, que listavam e ilustravam plantas de importância médica, logo, tendiam a possuir ilustrações mais objetivas, para evitar enganos (como o livro De Matéria Médica de Dioscórides, 50 d.C.) – e da posterior literatura de herbário [2] – com obras, por exemplo, de Otto Brunfels (1530) e Leonhart Fuchs (1542). Já a ilustração zoológica possivelmente teve seu embrião entre os séculos II e V, na literatura de bestiários – catálogos de animais representados de maneira nada objetiva e impregnada pelo imaginário cristão, às vezes contando até com criaturas mitológicas –, que posteriormente, no renascimento (XIV-XVI), se desenvolveu em enciclopédias zoológicas com ilustrações cada vez mais objetivas, iniciando nas obras de Gessner (1551), posteriormente mais realistas em obras como de GuillaumeRondelet (1554), Pierre Belon (1555), Ulisse Aldrovandi (1559) e Gabriele Fallopio (1575).

Figura 1: a. Pintura em aquarela dos estágios de vida de uma Lepidoptera por Maria Sybilla Merian, em sua obra Metamorfose insectorum Surinamensium, 1705. b. Litografia [3] pintada em aquarela por Ernst Haeckel, em sua obra Kunstformen der Natur, 1904. c. Pintura em aquarela da asa de um Coracias garrulus, por Albrecht Dürer, 1512.
De forma mais geral, podemos dizer que a ilustração científica teve sua origem da corrente do naturalismo (XIX), quando se mostrou interesse pela representação da biodiversidade de maneira mais realista, ilustrando o mundo natural como ele realmente era, sem idealismos, como nas obras do romantismo [4]. Alguns ilustradores que possuíam obras naturalistas incríveis (fig. 1) foram Maria Sybilla Merian (naturalista entomóloga [5]), Ernst Haeckel (biólogo evolucionista) e Albrecht Dürer (artista). A ilustração científica é uma vertente mais cientificista da ilustração naturalista, uma produção artística a serviço da ciência, que se diferencia por desenhos e pinturas que buscam passar algum tipo de conhecimento científico, logo se fazendo necessário um maior cuidado com a representação morfológica dos modelos, com detalhamentos e retratando a realidade, sem alterações por vaidade estética. Ela pode ser utilizada em áreas como ciências naturais, medicina, geologia, geografia, cartografia, astronomia e antropologia (aqui focaremos nas ciências biológicas). Uma vantagem da ilustração científica é que, assim como espécimes coletados para coleções biológicas [6], ela é de fácil armazenamento, porém resolve uma limitação que as coleções possuem, que é a capacidade representar o organismo em seu hábito natural, como ele se apresenta vivo em seu habitat, com coloração e demais detalhamentos.
Você possivelmente pode estar se perguntando: qual a utilidade da ilustração se, atualmente, podemos simplesmente utilizar fotografias? Esse era um medo de muitos artistas quando a fotografia foi criada no final do século XIX. A questão é que uma não anula a importância da outra, sendo desnecessária esta comparação, uma vez que o propósito vai nos dizer por qual delas optar. A ilustração tem suas vantagens dependendo do objetivo, por exemplo, muitas vezes é impossível tirar uma foto em que todos os detalhes necessários para identificação de uma determinada espécie estejam visíveis e claros, seja por limitações de dificuldade de fotografar o indivíduo na natureza ou por perda de resolução da imagem em determinadas áreas do espécime, por limitações focais. Sendo assim, numa ilustração, geralmente há um maior contraste, melhor visibilidade e certeza de que todas as características morfológicas úteis para identificação estejam bem representadas. Também levando em conta que muitas vezes a versão física publicada de periódicos e livros é em preto e branco, e muitas fotografias podem tornar-se de difícil visualização quando perdem suas cores, ao contrário do desenho, que possui técnicas monocromáticas que preservam os detalhes, volumes, nitidez e tonalidades. A ilustração também otimiza espaço, podendo ocupar menor área na folha do trabalho sem perder visibilidade. Entre outros aspectos.
A representação científica em ilustrações surgiu como um recurso auxiliar às descrições textuais, facilitando a passagem de determinado conhecimento de maneira mais clara e objetiva, superando limitações interpretativas decorrentes de descrições verbais. Por exemplo, eu seria capaz de descrever a coloração de uma determinada espécie de ave através de um texto, porém, a passagem dessa informação irá sofrer ruídos de interpretação, que poderiam ser resolvidos com a simples opção pela utilização de uma ilustração. Logo, eu poderia lhe descrever uma ave com “cabeça verde-água; pescoço e alto pescoço verde-limão-florescente; região perioftálmica, base do bico, garganta, dorso, porções das asas e cauda em preto; algumas coberteiras e álula azul escuro; uropígio amarelo; peito, base do calção, detalhes nas asas e cauda em azul ciano; barriga, detalhes nas asas e cauda em azul em verde claro” [7]. Mas isso jamais seria mais informativo do que lhe mostrar esta imagem:

Figura 2: a. Ilustração em grafite de uma Saíra-sete-cores (Tangara seledon). b. Ilustração em grafite colorida e finalizada digitalmente. Luís Gustavo Barretto Rodrigues, 2021.
Nesse cenário, a ilustração científica não pode ser desempenhada por qualquer pessoa com formação ou experiência nas artes visuais, pois ela não é pura e simplesmente um desenho ou pintura comum. Ela é atrelada a uma informação científica, logo, é necessário que o ilustrador tenha algum tipo de conhecimento científico que o faça ser capaz de julgar a melhor forma de representar o modelo, deixando evidentes as características diagnósticas [8] do espécime, sabendo o que pode ou não subentender, onde deve focar, que detalhes são de relevância (por exemplo, taxonômica [9]), como compor a imagem, etc. Um simples ilustrador poderia comprometer a relevância científica de sua obra, por exemplo, caso se permita fazer alterações na realidade do que está sendo observado, apenas por um critério estético, de deixar a peça mais bonita, o que seria fundamental para uma criação artística, mas não para uma ilustração científica.
Possivelmente, até aqui, você já deve ter compreendido que a ilustração científica trata-se de uma área interdisciplinar entre as artes visuais e as ciências da natureza. Consequentemente, afirmo que, na prática, este tipo de trabalho pode ser então realizado tanto por profissionais com formação em biologia (ou demais áreas citadas anteriormente), quanto em artes plásticas. Sendo dever do biólogo ilustrador científico buscar conhecimento acerca das técnicas de desenho e pintura e toda bagagem artística necessária para atuar nessa área, e dever do artista, pintor, gravador ou desenhista buscar adquirir conhecimento científico acerca de anatomia, morfologia e comportamento de animais, plantas e demais seres vivos, de taxonomia e demais saberes biológicos necessários para executar um bom trabalho. Um adendo importante, que frustra muitos profissionais formados em belas artes que criticam esta decisão, é de que muitas das instituições de ensino internacionais que oferecem cursos de pós-graduação (mestrado, doutorado...) na área da ilustração científica, aceitam apenas estudantes formados em cursos de ciências biológicas, uma vez que acreditam que esta especialização só pode ser desempenhada por profissionais com formação científica.
Agora vamos falar da ilustração científica na prática, afinal, que técnicas artísticas são utilizadas para esse tipo de trabalho? Dentre as técnicas monocromáticas em preto-e-branco, utiliza-se majoritariamente o grafite e a tinta nanquim – que pode ser na forma de canetas descartáveis, canetas técnicas, bico de pena ou líquida para aplicação com pincel. Ilustrações a lápis, em grafite, utilizam a variação da escala tonal de cinzas para representação de volumes, texturas e tons (fig. 2a, 3d e 4a). As feitas em nanquim lançam mão do uso de métodos de pontilhismo e hachura, no primeiro caso, utilizando-se de variações do tamanho e concentração de pontinhos, e no segundo caso, utilizando-se da espessura, adensamento, cruzamento e diferentes ângulos de traços paralelos ou perpendiculares, ambos para representar volumes, texturas e tonalidades (fig. 3a, 3b e 4b).

Figura 3: a. Chalcocopris hesperus em nanquim (pontilhismo) por Luís Gustavo Barretto Rodrigues, 2019. b. Crânio de Enhydra lutris em nanquim (pontilhismo) por Sean Vidal Edgerton, 2020. c. Iris ensata em lápis de cor por Dr. Ilka Bauer, 2020. d. Coprophaneus ensifer em grafite por Lucas Lacerda de Souza, 2020.
Já as técnicas coloridas mais utilizadas, são a aquarela e o lápis de cor. A aquarela é uma técnica molhada, ou seja, que utiliza tinta, água e pincéis para criar o volume, textura, tonalidade e cores da ilustração, por meio de diferentes diluições dos pigmentos. A aquarela pode ser encontrada na forma seca de pastilhas – onde você encosta o pincel molhado com água e carrega o pigmento, agora na forma de tinta, para a folha – ou de bisnagas – onde ela se encontra em forma pastosa, mas ainda assim é necessário diluir esse pigmento pastoso em água, para efetuar a pintura (fig. 4c). Já o lápis de cor é uma técnica seca (a não ser que sejam lápis aquareláveis e você acrescente água), onde se utiliza de diferentes lápis com minas [10] contendo pigmentos de diferentes cores para colorir o papel (fig. 3c).
As técnicas citadas anteriormente são as convencionais, artesanais, porém, atualmente, também temos à disposição um método mais moderno, que também vem sendo muito utilizado: a ilustração digital, que pode ser usada tanto para desenhos preto-e-branco, como coloridos. O método digital permite uma maior facilidade para ampliar e reduzir o desenho, na composição e organização de pranchas [11] e na melhor manipulação das cores. O trabalho também pode ser produzido de forma híbrida, parte utilizando técnicas convencionais, parte feito digitalmente (fig. 2b).

Figura 4: a. Prancha com hábito, partes florais e anatomia de um lírio (Lillium sp., Liliaceae) em grafite. b. Prancha com hábito de uma orquídea-borboleta (Phalaenopsis sp., Orchidaceae) em nanquim (pontilhismo). c. Martim-pescador-grande (Megaceryle torquata) em aquarela. Luís Gustavo Barretto Rodrigues, 2021.
Enfim, a ilustração científica é de suma importância em diversas áreas do conhecimento, como por exemplo, na paleontologia, uma das áreas que não possui, como as outras, a possibilidade de optar por fotografias para representar animais e plantas vivos em seu ambiente natural, uma vez que estes já estão extintos. Logo, é de extrema importância que existam ilustradores de paleoarte, que se baseiam em imagens dos fósseis, estudos de análises de metais para identificar padrões de pigmentação, dentre outros recursos para reconstruir como possivelmente era aquele organismo em vida. Também é de suma importância na taxonomia, na descrição de espécies novas de plantas, animais, fungos, etc. Pois geralmente nos trabalhos de descrição de espécies novas, é comum a anexação de pranchas de identificação do espécime que ilustram as características diagnósticas da espécie. Também é relevante na produção de esquemas de etologia (etogramas)[12], osteologia, ecologia, histologia, dentre outros muitos exemplos de áreas de aplicação.
“Meu desejo é pintar a vida, e para este fim devo pedir à ciência que me explique o que é a vida, para que eu a fique conhecendo” – ZOLA, Émile (1840-1902).
1. Pintura egípcia de 4,600 anos pode representar ganso extinto, aponta estudo. Revista Galileu. 2021. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Arqueologia/noticia/2021/02/pintura-egipcia-de-4600-anos-pode-representar-ganso-extinto-aponta-estudo.html?fbclid=IwAR1mEsdmP5sPmBdcN8e1ic5JjD14L0rxMTcvk5nzrnksMxtuQNk7KMO04ew
2. Herbários são coleções de material vegetal.
3. Técnica inventada por volta de 1796, baseada na produção de desenhos sobre uma placa de pedra calcária, utilizando lápis gorduroso, onde após longo processo de banhos com ácido, goma e água consegue-se fixar a imagem na superfície da pedra, entintar a pedra e fazer a impressão da imagem pressionando um papel contra a rocha. Toda a lógica do processo gira em torno da insolubilidade do óleo em água.
4. Romantismo foi um movimento artístico, político e filosófico, surgido na Europa, durou do séc. XVIII ao XIX.
5. Biólogos zoólogos que estudam os insetos.
6. Coleções biológicas são um conjunto de organismos ou partes deles, geralmente mortos, que são reunidos em um acervo biológico, utilizando-se de técnicas de conservação do material, quando necessário, e utilizados para estudos.
7. Não se preocupe se não tiver entendido nada do que consta nestas aspas, o objetivo era esse mesmo. Alto pescoço, região perioftálmica, coberteiras, álula, uropígio e calção são palavras (jargões) utilizadas por ornitólogos (estudiosos das aves) como uma nomenclatura mais técnica para descrever diferentes partes da anatomia externa de uma ave. Esse trecho servia apenas para exemplificar a dificuldade de compreender o que está sendo descrito.
8. Características morfológicas ou anatômicas que são exclusivas de um determinado grupo de organismos e que podem ser utilizadas para sua identificação.
9. Taxonomia é a área da biologia que reúne os organismos em grupos, com base em semelhanças de características e que define os nomes destes agrupamentos.
10. Mina é o nome que se dá para o cilindro interno do lápis responsável por depositar pigmento na folha e que é recoberto e protegido por madeira.
11. Prancha é uma imagem que reúne uma composição de figuras que representam diferentes partes do espécime, ressaltando características morfológicas e anatômicas que auxiliam na sua identificação (as fig. 4a e 4b são exemplos de pranchas).
12. Etologia é o estudo do comportamento animal e os etogramas são ilustrações esquemáticas que buscam descrever um determinado comportamento.
Sobre o Autor
Luís Gustavo Barretto Rodrigues, licenciando em Ciências Biológicas pela UFRJ. Ilustrador científico e naturalista (Instagram: @desenhaceae/E-mail: luibarretto@gmail.com). Membro do Laboratório de Ornitologia e Bioacústica da UFRJ.
Referências
SANTOS, Dalila. ILUSTRACAO CIENTÍFICA: ARTE OU CIÊNCIA? A ilustração botânica no acervo EBAOR. Boletim Informativo EBAOR, Biblioteca de Obras Raras, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro. p 21. RJ. Ano 4, n. 4, ago. 2020.
PEREIRA, Rosa Maria Alves. Ilustração Zoológica: Ilustración zoológica. 1 ed. 104 p. Belo Horizonte, MG. Frente Verso Editora. Nov. 2016.
CARNEIRO, Diana. Ilustração Botânica: princípios e métodos. 1 ed. 227 p. Curitiba, PR. Editora UFPR. Nov. 2015.
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