Contaminação por mercúrio em ambientes aquáticos: colhemos o que plantamos?
- Maykon Victor Rezende de Oliveira
- 17 de ago. de 2021
- 9 min de leitura
Podemos começar esta leitura relembrando que desde a Revolução Industrial, a natureza passou a ser explorada pelo homem de tal maneira que nunca fora vista anteriormente. A questão principal é que, a partir desse momento, novas problemáticas surgiram e uma delas é o foco deste texto: a constante liberação de poluentes nos ecossistemas aquáticos causando contaminações por metais tóxicos, como o mercúrio (Hg).
Os metais presentes na água podem ter uma origem natural (através dos intemperismos¹ de rochas, do vulcanismo, entre outras origens geológicas) ou podem ter uma origem antropogênica (através de indústrias, mineradoras, garimpos, defensivos agrícolas, entre outras fontes antropogênicas). Dependendo das propriedades toxicológicas, alguns metais são considerados mais tóxicos por causarem efeitos adversos no organismo vivo, inclusive em baixas doses. As ações antrópicas causam grandes alterações nas dinâmicas desses poluentes tóxicos, o que vem gerando um aumento destes nos meios aquáticos e consequentemente na fauna. Mas como isso pode ser prejudicial para o meio ambiente e para os organismos?
Como exemplo, olhemos para a Baía de Guanabara – Rio de Janeiro –, um ambiente estuarino² que sofre pela degradação ambiental causada por influência do homem através do desenvolvimento urbano-industrial (Figura 1). A expansão de diversas indústrias ao redor da baía, bem como o próprio aumento populacional acarretam grandes impactos nesse ambiente costeiro, gerando efluentes tanto domésticos quanto industriais; mas estes últimos causam uma maior preocupação e eu irei explicar o porquê: existem mais de 6.000 indústrias localizadas em torno da Baía de Guanabara, que acaba recebendo substâncias tóxicas, óleos, metais-traço³, e outros contaminantes, que prejudicam toda biota presente e afetam diretamente a qualidade da água. Wasserman e colaboradores (2000), relatam que a Baía de Guanabara recebe diariamente uma carga bem elevada de metais tóxicos (4.800 Kg/dia) oriundos de poluentes industriais. Isso não significa que os efluentes domésticos não mereçam tal preocupação também, o ideal seria não ter tais contaminantes sendo liberados no meio ambiente, sobretudo sem ter ao menos um tratamento primário – o que acontece muitas vezes.

Figura 1: Baía de Guanabara poluída. Fonte: “Extra” / 2-3-2016 / Roberto Moreyra
O Mercúrio:
Dentre esses metais tóxicos, o mercúrio recebe grande destaque, principalmente por ter uma fase gasosa (o que permite a fácil dispersão dele pela atmosfera) e por sua conhecida capacidade de bioacumulação, isto é, a capacidade de permanecer nos tecidos e órgãos dos organismos vivos. O Hg é um metal que ocorre naturalmente em baixas concentrações no meio ambiente e seus compostos têm efeitos altamente tóxicos aos organismos vivos, ou seja, prejudicam diretamente a saúde do indivíduo – como vocês verão nos próximos parágrafos. Ademais, como Hg não é um elemento essencial para os seres vivos, ele permanece durante um bom tempo na cadeia trófica, sendo passado de organismos de níveis tróficos menores (algas, zooplâncton, moluscos, pequenos peixes) para organismos de níveis tróficos maiores (peixes, mamíferos e aves marinhas piscívoras, até humanos) devido a essa capacidade de bioacumulação mencionada.
Com as constantes ações do homem, as concentrações desse elemento têm aumentado na natureza, o que vem causando contaminações por Hg em muitas regiões do planeta. No Brasil, tivemos um caso recente de contaminação por Hg que aconteceu no Rio Tapajós, no Pará, e ganhou destaque após o povo indígena Munduruku (Figura 2) sofrer pelos impactos do mercúrio, oriundo das atividades de garimpos próximos aos ecossistemas aquáticos. Como o rio foi afetado, os organismos presentes nele também foram. Nesse sentido, além da água ter sido contaminada por Hg, os peixes que são a base da alimentação de muitos indígenas foram contaminados também. De acordo com o Paulo Basta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), esse metal tóxico causou não só prejuízos a saúde dos indígenas – que apresentavam níveis desse metal acima do recomendado pelas organizações de saúde – como também afetou a economia local, os serviços ecossistêmicos e a segurança alimentar.

Figura 2. Fotografia do povo indígena Munduruku. Fonte: Informe Ensp.
Os efeitos desse poluente na saúde humana causam muito espanto, pois podem provocar danos leves, danos que deixam uma pessoa com uma vida vegetativa, ou até mesmo a morte – dependendo da concentração do Hg. O mercúrio, sobretudo na sua forma orgânica (metilmercúrio)⁴, é um agente altamente neurotóxico: prejudica as funções neurológicas, causa distúrbios sensoriais, tremores, paralisias, danos às funções cognitivas, entre outros. Além disso, esse metal também é conhecido como agente teratogênico, pois causa dano ao feto em desenvolvimento (afetando principalmente seu desenvolvimento neural), durante a gravidez, visto que tem capacidade de atravessar a placenta. Uma mãe contaminada por Hg também pode passar essa substância tóxica para o bebê através do leite materno. Testes genotóxicos⁵, detectam que esse contaminante pode induzir cânceres e doenças hereditárias, pois ocorrem mutações, tanto a nível cromossômico quanto a nível gênico, nos organismos expostos.
Um caso bastante conhecido de intoxicação por mercúrio aconteceu na cidade de Minamata, no Japão. Durante muitos anos, uma indústria química (Chisso) jogava seus efluentes que continham mercúrio em um rio que desaguava na Baía de Minamata, o que acabou contaminando toda vida presente nesse meio, como os peixes. A indústria pode ter descartado cargas altíssimas (toneladas) de metilmercúrio (MeHg) na Baía de Minamata – essa forma orgânica do mercúrio é considerada a mais tóxica para organismos, o que causou um grave acidente biológico. A partir de 1956, os hospitais passaram a receber pessoas com sintomas semelhantes, como paralisia, danos no sistema nervoso, doenças degenerativas, bebês com deformidades (que levavam à morte na maioria dos casos), entre outros. Como alguns animais domésticos apresentavam sintomas parecidos, as autoridades pensavam que se tratava de uma epidemia; mas anos depois, descobriram que a causa desses problemas estava ligada ao consumo de peixes e outros organismos marinhos contaminados por Hg. Houve várias vítimas que sobreviveram, porém com diversas consequências que impediam uma vida comum, e houve diversas mortes. Atualmente, chama-se de doença de Minamata uma síndrome neurológica causada por intoxicação por mercúrio.

Figura 3: Vítima de Minamata, Japão, no colo de sua mãe. Fotografia tirada por: W. Eugene Smith / Black Star.
Outra doença originada por conta dos efeitos adversos desse agente tóxico na saúde humana é a “doença do chapeleiro maluco” (personagem famoso de Alice no país das maravilhas, criado por Lewis Carroll), que surge como consequência da exposição ao vapor de mercúrio. Séculos atrás, na Inglaterra, muitos chapeleiros durante a fabricação de chapéus os tratavam com o vapor do mercúrio metálico para atender aos padrões da época. Devido a essas exposições constantes, eles sofriam intoxicação por mercúrio e, por conseguinte, desenvolviam problemas neurológicos. Essa intoxicação por mercúrio compromete o sistema nervoso causando diversos problemas, como os já descritos em parágrafos anteriores.
Na nossa sociedade atual, a principal via de exposição ao Hg em humanos e em outros animais é através da alimentação. Normalmente, os peixes são as principais fontes alimentares de muitas pessoas, e por conta disso são realizados muitos estudos que analisam a concentração de substâncias tóxicas no pescado. Os peixes conseguem absorver boa parte dos contaminantes lançados no meio, seja pela alimentação ou seja pela água (Figura 4). O tecido de investigação que os pesquisadores analisam, na maior parte dos casos, é o músculo – a parte que é ingerida pelas pessoas. Isso porque, esses elementos tóxicos, como o Hg, tendem a se acumular no músculo e em outros órgãos por serem dificilmente excretados pelo organismo, então se esse tecido consumido pela população apresentar uma concentração mais elevada de determinado agente tóxico, acaba representando um risco à saúde pública. Desse modo, os peixes são bastante aproveitados para monitorar não só a qualidade de vários ambientes aquáticos – sendo excelentes bioindicadores de poluição –, como também a saúde dos pescados.

Figura 4: Esquema autoral mostrando um peixe absorvendo o poluente do meio em que vive.
Para aqueles que ficaram preocupados com as informações apresentadas aqui e como podemos sofrer com essas intoxicações, até mesmo consumindo um simples peixe, podemos evitar o consumo de animais topos de cadeia, como alguns peixes carnívoros, por exemplo. Isso pode ser explicado através da biomagnificação. O organismo de um nível trófico maior terá que consumir mais alimento do que o organismo do nível trófico anterior, haja vista que há sempre uma perda energética à medida que vai aumentando esse nível. Então, é lógico pensar que aqueles que tendem a perder mais energia consumirão mais alimento para tentar repor essa perda energética. Dependendo da taxa de absorção e excreção, o tóxico vai possuir uma maior concentração nos animais de níveis tróficos mais altos. Como os peixes carnívoros estão em maiores níveis tróficos, se consumirmos algum peixe carnívoro contaminado, iremos adquirir uma maior concentração do elemento tóxico do que se a gente consumisse um peixe contaminado de um nível trófico menor. Logo, a biomagnificação vai ser justamente esse aumento de concentração das substâncias conforme há um aumento no nível trófico – as substâncias tóxicas irão de um nível para o outro ao longo da cadeia alimentar.
Então, uma dica é: se quer continuar consumindo peixe, ou outro animal marinho, e não se intoxicar por mercúrio, por exemplo, saiba qual espécie escolher e saiba de qual ambiente o pescado veio, se possível. Além desses fatores importantes de decisão, devemos nos preocupar muito mais com a dose. Você ainda pode continuar consumindo peixes se quiser, afinal, são excelentes fontes de vitaminas, e no ritmo normal das cidades brasileiras (consumindo peixes uma ou duas vezes na semana) não é comum gerar doenças; mas se você consumir toda semana um peixe carnívoro amazônico, por exemplo, os riscos são muito maiores.
Por isso, para os humanos não serem afetados diretamente por esses contaminantes, precisamos reduzir os níveis de emissões de metais tóxicos no meio ambiente. Se continuarmos influenciando nos ciclos biogeoquímicos⁶ naturais de determinados elementos químicos, vamos continuar gerando problemas como os mencionados durante o texto. É importante lembrar que o mercúrio não é degradável, assim como muitas outras substâncias tóxicas, portanto, não podemos deixar que tais substâncias entrem facilmente na cadeia alimentar – não há nenhum efeito benéfico para nós nessa prática, visto que isso só piora nossa qualidade de vida. O meio ambiente sofre tanto quanto a gente, porém quem causa esse sofrimento somos nós mesmos, na maior parte dos casos. Por fim, nota-se o quão importante são as pesquisas que estudam sobre essa temática. Precisamos sempre monitorar a qualidade dos ambientes em que vivemos para tentar manter um equilíbrio que traz benefícios a todas formas de vida. As intoxicações por metais tóxicos podem ser evitadas e controladas, os danos que causamos ao meio ambiente também.
NOTAS:
Intemperismo: é um processo que ocorre naturalmente no meio ambiente, caracterizado pelos desgastes das rochas e dos solos, devido aos agentes físicos, químicos ou biológicos que transformam esses materiais ao longo do tempo. Os sedimentos são formados através desse processo, por exemplo.
Estuário: é um ecossistema aquático de transição, semifechado, que recebe água salgada do mar e água doce de rios ou córregos, por isso é considerado altamente produtivo. O ambiente estuarino contém bastantes habitats que abrigam diversas espécies de animais, além de ser um ambiente muito importante para a alimentação e reprodução dessas espécies.
Metais-traço: são metais que ocorrem na natureza em pequenas concentrações, e estão relacionados a poluição ambiental e toxicidade.
Metilmercúrio (MeHg): é uma das formas orgânicas do mercúrio, sendo considerada a mais tóxica aos seres vivos, sobretudo pela facilidade que os organismos têm para absorver e assimilar esta forma metilada, que se acumula preferencialmente no sistema nervoso central causando disfunções neurais, paralisia e morte.
Genotóxicos: são substâncias tóxicas que causam danos ao nível molecular (afetando a estrutura do DNA, por exemplo). Os agentes genotóxicos podem gerar a morte celular, formação de células cancerígenas ou outros danos prejudiciais aos organismos vivos por causarem mutações.
Ciclo biogeoquímico: é o caminho que um determinado elemento químico faz entre os seres vivos e o meio ambiente. Tal ciclo é importante para a reciclagem do elemento na natureza.
Sobre o Autor
Maykon Victor Rezende de Oliveira, licenciando em Ciências Biológicas pela UFRJ. Membro do Laboratório de Ecotoxicologia Marinha da UFRJ (Instagram: @lab_de_ecotox_marinha). Estuda sobre como o mercúrio, um dos poluentes mais tóxicos segundo a OMS, é distribuído e acumulado nos diferentes órgãos e tecidos dos peixes - a fim de guiar investigações sobre os efeitos desse poluente.
Referências
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CETEM. O caso de Minamata. Disponível em: https://www.cetem.gov.br/mercurio/semiquanti/por/caso_minamata.htm. Acesso em: 28 de março de 2021.
COSTA, M. A. M. Da lama ao caos: um estuário chamado Baía de Guanabara. 2015. Cad. Metrop., 17: 15-39. DOI: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3301
FIOCRUZ. Estudo analisa a contaminação por mercúrio entre o povo indígena munduruku. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/estudo-analisa-contaminacao-por-mercurio-entre-o-povo-indigena-munduruku. Acesso em: 28 de março de 2021.
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WHO. Environmental Health Criteria 118. Inorganic Mercury. 1991. Inrternational Program on Chemical Safety, World Health Organization, Geneva, Switzerland.
ótimo texto, parabéns!!
Adorei contribuir com o Bioletim, qualquer dúvida que tiverem a respeito podem mandar mensagem a vontade no Instagram do lab! <3
Espero que gostem da leitura!
At.te,
Maykon Victor